INTRODUÇÃO
Dois anos antes da Proclamação da República houve um forte movimento separatista em São Paulo. O principal motivo para isso foi o fato de os paulistas dominarem a economia mas não encontrarem igual correspondência no âmbito da política [ADUCCI, p.19]. A República veio colocar os fazendeiros paulistas no poder, encerrando as pretensões separatistas em voga.
A mitologia paulista foi se construindo aí. “A afirmação da superioridade paulista é um mito difuso que às vezes adquire importante eficácia política. Manifestou-se durante a Primeira República e esteve presente na chamada revolução de 1932. O que poucos sabem é que tal ideário adquiriu fisionomia bastante definitiva ao longo de 1887, quando exerceu significativa influência sobre o movimento republicano paulista” [ALMEIDA, p.9].
Era preciso mostrar que o paulista era o moderno, o trabalhador, a locomotiva que puxava os vagões representados pelos demais Estados brasileiros [FRANZINI, p.22]. Como observa Joseph Love, o bandeirante era a síntese dessa “busca infatigável por parte de São Paulo, da aventura, da oportunidade, desde os dias da caça aos escravos e do desbravamento do sertão, na era colonial, até os dias presentes”. Esse “estratagema intelectual”, o de buscar no bandeirismo suas raízes, constituía um paradoxo, pois justapunha o polido (famílias de quatrocentos anos) e o grosseiro (o bandeirante), que em vez de se constituir em um problema, transformou-se em orgulho para os paulistas [LOVE, p.60].
Cássia Adduci também aborda o tema [ADUCCI, p.211]. “Nessa construção [dotar a ‘pátria paulista’ de individualidade necessária à constituição de uma nacionalidade], a figura do bandeirante foi central. As características atribuídas a ele foram, por extensão, associadas aos ‘paulistas’, historicamente possuidores de iniciativa, audácia, vigor e capacidade de conquistar, espalhando a civilização”.
O ideário separatista se transmuda na Primeira República em luta constante pela autonomia da unidade mais rica da federação. Não era mais necessária a separação de São Paulo, mas o exercício do poder, a independência desembaraçada de liames centralizadores característicos da Monarquia. A Constituição de 1891 veio atender a esse desejo de São Paulo, dando aos Estados da federação larga margem de autonomia (cobrar impostos interestaduais, decretar impostos de importação, contrair empréstimos no exterior, organizar força militar) [RESENDE, p.94]. São Paulo, a locomotiva, saíra na frente. “Até o princípio da década de 30 os principais atores políticos de São Paulo foram concordes na importância da autonomia estadual para defender a economia paulista” [LOVE, p.57].
São Paulo agia como um só bloco. O Partido Republicano Paulista (PRP) garantia a hegemonia política. Essa monolítica unidade do PRP, segundo Joseph Love [LOVE, p.58] se devia à convicção “de que São Paulo representava um centro de progresso e civilização num país sul-americano desorganizado”.
Ao mesmo tempo que São Paulo se impunha ao resto do país, o presidente Campos Sales iniciou um processo de despolitização da Capital Federal, associada a bagunça e conturbações [NEVES, p.38]. Outro mito estava sendo criado, o do carioca preguiçoso, boa-vida e avesso à ordem.
Postos no governo, Prudente de Moraes e Campos Sales arregaçaram as mangas e liquidaram com as aspirações desenvolvimentistas via industrialização. Os fazendeiros paulistas assumiram o comando não só econômico como político, preparando a “ascensão gloriosa daquele em cujo período deu-se o apanágio econômico da burguesia agrária paulista, Rodrigues Alves” [CARDOSO, p.38]. Os interesses regionais paulistas, durante a Primeira República, “sempre se fizeram representar junto ao Governo Central, detendo pastas importantes nos Ministérios”, mesmo sob as presidências de Deodoro e Floriano [CARDOSO, p.38]. São Paulo sozinho não podia controlar o Executivo federal. Quando apareciam os obstáculos, agia de acordo com Minas Gerais para dominar o Governo Central. “As exigências básicas de São Paulo giravam em torno de serviços que somente o Governo Central poderia proporcionar – aval para empréstimos feitos no estrangeiro, controle da política monetária e de divisas, e representação dos interesses econômicos do Estado no estrangeiro através de canais diplomáticos”. [LOVE, p.53]
Nem todas as instituições estavam sob a alçada dos novos donos do poder, dentre elas, a entidade que controlava o futebol brasileiro. Esse incômodo para os poderosos paulistas resultou em conflitos que envolviam as ligas futebolísticas de São Paulo, da cidade do Rio de Janeiro, então capital do País, e a nacional. O momento mais grave dessas dissensões ocorreu em 1930, quando da efetivação da primeira Copa do Mundo, realizada em Montevidéu. Essasdissensões são tratadas por quase todos os autores como incompreensão das partes. Nem sempre foram fruto de incompreensão das partes. Havia razões.
Seria ingênuo supor que o que ocorria nas esferas políticas e econômicas não se transportasse para o futebol, mormente quando ele se tornou um esporte popular, envolvendo todas as camadas da população brasileira.
Fábio Franzini [FRANZINI, p.22] não deixa escapar o fato de que política e futebol estavam ligados: “O atrito entre paulistas e cariocas dentro dos gramados podem então ser interpretados como reflexo de uma luta maior, travada no terreno ideológico por grupos empenhados em conquistar a hegemonia política e cultural do país”.
O sociólogo Waldenyr Caldas intervém no mesmo sentido, o da relação entre futebol e política: “O futebol era apenas o reflexo de uma disputa maior que abrangia outras esferas. De um lado, o Rio de Janeiro com o poder político, o centro de decisão do país; de outro, o Estado de São Paulo, representando o poder econômico, caracterizado pela produção-exportação de café, representado pelo que os historiadores chamam de ‘aristocracia do café’” [CALDAS, p.90]. Concordo em parte com o citado autor. O Rio de Janeiro era a sede do poder na Primeira República, quando as dissensões futebolísticas ganharam tons dramáticos, mas não era o seu centro de decisão, que estava no Estado vizinho mais ao sul. Então não se tratava de uma batalha entre o centros de decisão e do poder econômico, pois estes eram os mesmos; a guerra pelo domínio do futebol tem outro cenário, bem parecido, mas não igual.
A supremacia futebolística de São Paulo durante a Primeira República é inconteste. Provavelmente, a razão disso se deva ao fato de jovens pobres, evidentemente não pertencentes à jeunesse dorée da elite paulistana, estivessem em campo defendendo o popular Corinthians e o clube de colônia Palestra Itália. O Corinthians começou a participar do campeonato paulista desde 1912 e o Palestra a partir de 1915. No Rio, só em 1923 a barreira foi ultrapassada com a subida do Vasco da Gama à primeira divisão. Entretanto, os negros encontravam dificuldades para participar dos clubes de São Paulo, mesmo que esses já contassem com atletas dos setores menos favorecidos da população. O mulato Friedenreich teve que se passar por branco, e sem Friedenreich, talvez, o domínio paulista do futebol não se fizesse tão claramente. Aliás, as brigas internas no futebol paulista, que causaram a derrota de São Paulo na luta pelo domínio administrativo do futebol brasileiro, são fruto da disputa entre as entidades muito elitistas e as menos elitistas.
Depois da Revolução de 30 a história passou a ser outra. A saída em massa de jogadores bandeirantes para o exterior em 1931 e a debandada de quase todo o selecionado paulista para clubes do Rio em 1934, em especial para o Fluminense, somados ao surgimento de Domingos da Guia e Leônidas da Silva no futebol carioca, levaram o futebol paulista a uma posição de inferioridade diante do histórico rival. Essa supremacia do Rio se prolongou durante todo o período do primeiro governo de Getúlio Vargas.
Com a crista baixa, São Paulo recorreu ao conhecido estratagema da criação de mitos para se manter orgulhoso e altivo no terreno futebolístico. Então, os jornalistas Tomás Mazzoni e Paulo Várzea foram atrás de um mito que fosse expressivo. E encontraram um tão poderoso que até hoje é aceito quase sem discussões: o do introdutor do futebol no Brasil. O Brasil é o único país que tem um introdutor do futebol identificado e devidamente fichado. O paulista Charles Miller foi o eleito. Ora, ninguém sabe quem começou o futebol no Brasil [SOTER, p.24/25]. Paulo Várzea escreveu um artigo para o jornal paulista A Gazeta Esportiva, de 4 de maio de 1942, demonstrando por a+b que fora Miller quem iniciara a prática do futebol no Brasil. Mazzoni aproveitou a deixa e crismou Miller como o “pai do futebol brasileiro”. É bem verdade que essa cognominação dada a Charles Miller já existia. O jornal carioca O Imparcial, dentro de uma série que tratava dos grandes do futebol, em sua edição de 21 de outubro de 1927, entrevistou Miller e o título da matéria era “O pai do futebol barasileiro”. Em 1927, asupremacia futebolística de São Paulo era tamanha que o aposto não despertou maior interesse. Mas ficou guardado e seria utilizado em momento mais conveniente.
O simples fato de o jovem Charlie ter chegado ao Brasil com duas bolas de futebol em 1894 teria sido o suficiente para atribuir-lhe a paternidade do velho e violento esporte bretão entre nós. O garoto estava pensando em tudo quando desembarcou com seu material esportivo, menos em ser pai de nada, como ocorrem com os pais em geral quando produzem seus filhos. Na época em que São Paulodominava absoluto o futebol ninguém estava preocupado em saber quem era o pai do futebol. Mas em 1942, com o futebol paulista lá no fundo, sem ídolos, sem craques, era necessário ir atrás de um mito. E não é que funcionou?
A falta de seriedade carioca é outro mito desagradável que os nascidos no Rio de Janeiro têm de suportar. Sua inferioridade em relação aos esforçados trabalhadores paulistas seria óbvia. O dirigente bandeirante Mário Cardim, um personagem importante de nossa história futebolística, via a superioridade paulista devida “ao próprio ‘adiantamento moral e material’ do Estado de São Paulo, que daria a ele e a seus habitantes ‘uma posição absolutamente singular’” [PEREIRA, p.159]. Campos Sales parece ter conseguido espalhar para os quatro cantos do Brasil que o Rio de Janeiro não era uma cidade séria. Quem manda ter praia e carnaval?!
Os jornalistas de São Paulo pegavam no pé dos cariocas; qualquer pretexto servia para dar asas aos preconceitos. E os do Rio não ficavam atrás. Há fatos curiosos que retratam essa hostilidade recíproca. O que conto a seguir vem da Copa de 30 – que terá, ao fim deste trabalho, um capítulo a ela dedicada. Depois da negativa de a federação de futebol de São Paulo em ceder jogadores para a Seleção, os jornais paulistas e cariocas trocaram desaforos. Eis duas intervenções jornalísticas:
1) Se do lado dos cariocas os paulistas eram tratados costumeiramente como impatrióticos e bairristas (“os paulistas eram mais paulistas do que brasileiros”, resume Leonardo Pereira a opinião dos jornais do Rio [PEREIRA, p.163]). São Paulo ia na ferida. O Estado de S.Paulo, de 15 de junho de 1930, fala dos dirigentes e jogadores cariocas, que iriam para Montevidéu disputar o Mundial. “Por uma viagem longa (...) os cariocas sacrificam tudo, inclusive a eficiência técnica dos quadros. Querem lá saber de prestígio nacional!”.
2) Fábio Franzini [FRANZINI, p.24] cita um artigo da Folha da Manhã, de São Paulo, do início de julho de 1930, acerca dos jogadores cariocas que iriam defender a Seleção na Copa do Mundo. A Folha da Manhã duvidava da eficiência daqueles atletas: “(...) Isso porque (são os próprios cronistas que relatam), os jogadores cariocas são encontrados perambulando pelos cafés, casas de chopps e outros locais da capital da República, onde são entrevistados sobre o palpitante assunto. (...) Isso mais uma vez justifica aquela tirada irônica, que abertamente diz que, para as representações de gala, os cariocas estão sempre prontos, metidos nos seus inconfundíveis smokings, mas, quando chega a hora do deus-nos-acuda, os paulistas 'impatrióticos' é que são chamados para salvar a pátria (...)”.
Conteúdo dos capítulos
Quanto à estrutura do presente trabalho, trato inicialmente da historiografia essencial para acompanhar a evolução dos fatos que culminaram na crise de 1930. A seguir, procuro mostrar essa evolução desses fatos e, por fim, enfoco o instante em que o Brasil defenderia o seu nome esportivo no primeiro torneio futebolístico mundial.
1. HISTORIOGRAFIA
Quem primeiro se dedicou a historiar o futebol brasileiro foi o jornalista Tomás Mazzoni, o Olímpicus, com a sua História do Futebol no Brasil - 1894/1950. Trata-se de um livro raro, disputadíssimo. Quando encontrado em sebos, o preço do exemplar é exorbitante. Por isso, o que existe por aí são cópias xerocadas, também bastante caras. Mazzoni aborda, de maneira imparcial, todos os eventos futebolísticos – campeonatos regionais, campeonatos brasileiros, fundação de clubes, participações do escrete nacional – até meados do século passado. Não é um livro homogêneo: aspectos fundamentais são, às vezes, sumariamente tratados, enquanto algumas superficialidades recebem detalhamento bem acima de sua importância. Graças a Mazzoni, Charles Miller popularizou-se como o introdutor do association no Brasil, o “pai do futebol”.
Em torno da paternidade do futebol brasileiro, também se pronunciou Roberto Mércio, radialista gaúcho radicado no Rio de Janeiro, autor de A história dos Campeonatos Cariocas de futebol. Cheio de dedos, sem querer magoar ninguém nem pôr em xeque a história correntemente aceita, rediscute Charles Miller como o iniciador do futebol no Brasil. E expõe seu ponto de vista: em 1886 já se praticava o jogo no Colégio Anchieta de Friburgo, Rio de Janeiro. Mércio, ao se dedicar à história do futebol carioca, contada através de seus campeonatos entre 1906 e 1984, fornece elementos de grande valia para o pesquisador. Como afirma João Saldanha na apresentação do livro: "um trabalho sério e importante para quem quiser saber das coisas por dentro e por fora do nosso jogo preferido".
O futebol carioca é tratado em extensão maior por Roberto Assaf e Clóvis Martins. Em o Campeonato Carioca: 96 anos de história, 1902-1997, praticamente não deixam escapar nada do que ocorreu nos certames guanabarinos, desde o primeiro campeonato do Rio de Janeiro. O livro apresenta o resultado de todas as partidas, além das escalações completas dos jogos dos campeões de cada ano.
Tido como livro fundamental, O negro no futebol brasileiro, cuja primeira edição é de 1947, tornou-se obra de referência. Acredito que, mais do que um estudo sociológico, pois os conceitos variaram muito de lá para cá, esse livro deve ser apreciado como boa literatura. A apresentação é de respeito: Gilberto Freyre (edição de 1947); o aval anti-racista, também: Edison Carneiro (edição de 1964). Mesmo assim, lido hoje em dia, dá para perceber derrapadas no sentido do politicamente incorreto. Há que situá-lo na década de 40. O texto é delicioso, como são todos os produzidos por Mário Filho. O estilo do autor nos prende e ler O negro no futebol brasileiro de uma tacada não é tarefa difícil. O livro procura provar a inserção do negro através do futebol, mostrando pari passu a sua aceitação, que se consagraria nos anos 30 com sua ascensão social.
Footballmania, de Leonardo Affonso de Miranda Pereira, é essencial. Abrange o período aqui enfocado e aprofunda questões valendo-se de fontes primárias, os jornais da época. O autor é doutor em História Socialpela Unicamp. O livro é baseado em sua tese de doutorado. Por isso, talvez, ele nos obrigue a manter dois marcadores: um no texto e outro nas notas, que somam 854, dentro de 354 páginas. Sem dúvida traz-nos um ponto de vista sociológico mais atualizado do que O negro no futebol brasileiro. Muito impressionado com as opiniões do presidente Vargas, Pereira voa do final dos anos 20 para a Copa do Mundo de 1938, cujos acontecimentos são registrados por Getúlio em seu diário. Passa veloz pela Copa de 34 e não se refere à Copa de 30 e da presença dos suburbanos cariocas no time que conquistou a Copa Rio Branco de 1932.
Os sociólogos vêm produzindo muitos trabalhos sobre futebol. Um deles, bastante citado por outros autores, e por isso aqui referido, é o do professor da USP Waldenyr Caldas, intitulado O pontapé inicial: memória do futebol brasileiro. Fartamente documentado, apoiando-se nas interpretações do clássico de Mazzoni, o leitor pode encontrar ali bom material para entender os primórdios do futebol brasileiro. Os autores paulistas, incluído aí Waldenyr Caldas, não costumam tocar na grande vitória brasileira na Copa Rio Branco de 1932, que foi objeto específico de um dos mais interessantes livros de Mário Filho. O texto de Caldas é agradável, porém ao tratar das querelas Rio-São Paulo, sempre encontra um jeito de dizer que os paulistas têm razão.
O ano de 2003 reservou-nos uma boa surpresa: o mestre em História Socialpela USP Fábio Franzini. O seu Corações na ponta da chuteira lê-se em minutos, tal a fluência imprimida pelo autor. O primeiro capítulo ("Éramos todos brasileiros?") tem tudo a ver com o tema desta monografia. Como o livro de Franzini chegou-me às mãos depois de eu ter a idéia de escrever sobre a rivalidade Rio-São Paulo, parei para pensar: "Será que Franzini escrevera o que eu queria dizer?". Muito do que eu pretendia contar aqui, Franzini já tinha contado. Mas sempre resta um espaço para a originalidade, já que o luxo não cabe nesta espécie de trabalho. O autor começa pelo antagonismo entre os dois principais centros, enveredando para os aspectos sociais e raciais do futebol.
João Saldanha, uma das mais consagradas personalidades da vida brasileira, tem vários livros editados. A maioria são compilações de artigos por ele escritos na imprensa. Dentre os que não estão nesse rol, vale a pena ter à mão para consultas, nem sempre ocasionais, O futebol (Coleção Brasil Hoje: tudo que o jovem deve saber sobre a realidade do país). Ali está tudo que jovens e adultos devem saber sobre futebol. O texto descontraído de Saldanha percorre os acontecimentos desde o primeiro chute dado por chineses em seus jogos marciais em 2500 a.C., passando por Charles Miller e mostrando os pontos relevantes da evolução do futebol entre nós, como o marco histórico representado pela conquista brasileira do Campeonato Sul-americano de 1919.
Ensinar a essência do futebol é o que se propõe Pedro Zamora (autor de A hora e a vez de João Saldanha; A era Kanela; Tim, o estrategista, entre outros) apelido que o escritor marxista Jocelyn Brasil (O petróleo é nosso; O pão, o feijão e as forças ocultas; Marxismo, a varinha de condão) arranjou para ele próprio. Você pensa que entende de futebol?Eu também!é o último livro do prolífico Pedro Zamora-Jocelyn Brasil, que indico como importante para aqueles que desejam conhecer a alma desse esporte.
A história do futebol em São Paulo não pode ficar fora deste rol. Valmir Storti e André Fontenelle escreveram A história do Campeonato Paulista e Rubens Ribeiro, patrocinado pela Federação Paulista de Futebol, O caminho da bola: 100 anos de história da FPF, primeiro volume, abrangendo o período 1902-1952 (que eu saiba, ainda não saiu o segundo). Storti & Fontenelle passeiam pelos campeonatos paulistas sem se preocuparem em situar o relacionamento dos clubes bandeirantes com os cariocas e a Confederação Brasileira de Desportos. E quando o fazem, procuram ser imparciais. O livro vai até o campeonato de 1997, citando os fatos mais importantes dos torneios e as súmulas dos jogos finais. Já Ribeiro informa todos os jogos do período abrangido, com escalações, goleadores, tudo enfim, numa pesquisa de fôlego. Por outro lado, mostra-se um ideólogo da supremacia moral paulista. Ambos os livros são fundamentais, dependendo do assunto que queiramos saber: se história, Storti & Fontenelle; se números até 1952, Ribeiro.
Por fim, cito o livro de minha autoria, Enciclopédia da Seleção- As Seleções Brasileiras de futebol - 1914/2002, que contém duas partes interligadas. Na primeira está a história da Seleção Brasileira e, na segunda são encontrados os dados estatísticos, tais como as súmulas de todos os jogos da Seleção e a relação dos jogadores que dela tomaram parte, com seus nomes completos e desempenho (quantidade de jogos e gols). Além disso, há uma resenha da atuação do nosso selecionado em competições internacionais (Copa do Mundo, Copa América, Copa Roca, etc.).
2. QUANDO O FUTEBOL ERA UM ESPORTE COMO OUTRO QUALQUER
Os alegres jovens do Rio e de São Paulo passaram a se encontrar em elegantes partidas, sendo as primeiras realizadas em outubro de 1901 [HAMILTON, p.48]. São Paulo se organizou primeiro, fundando em dezembro de 1901 a Liga Paulista de Futebol (LPF). Os ingleses dominavam a cena esportiva, tanto no Fluminense como no São Paulo Athletic (SPA), os dois principais clubes de suas cidades respectivas. Assim, pacificamente, os dois centros se enfrentavam. O futebol ganhava uma certa popularidade, tanto que, quando uma seleção paulista, jogando no Rio, derrotou a carioca em 1906, ano em que se organizou o primeiro campeonato do Distrito Federal, os valorosos rapazes da Paulicéia foram recebidos triunfalmente na estação da Luz.
Em 1907, aLiga Metropolitana de Futebol trocou de nome, passando a se chamar Liga Metropolitana de Esportes Atléticos (LMEA). O Rio pensava que mandava no futebol. Só por estar na Capital Federal, a Liga Metropolitana decidiu criar por moto próprio, e com certa arrogância, o Campeonato Brasileiro de Futebol, afirmando na ata da assembléia realizada em 11 de fevereiro de 1907 que “a esse campeonato só poderão concorrer as Ligas dos Estados da República reconhecidas pela Liga Metropolitana [o grifo é meu] (...) O prêmio do Campeonato Brasileiro de Futebol é de oferta do Exmo. Sr. Presidente da República e consta da riquíssima taça denominada ‘Brasil’.” [MAZZONI, 1950, p.66]. Na verdade, tratava-se de um torneio Rio – São Paulo, pois não apareceu mais ninguém para disputar o Campeonato. A seleção paulista levou a melhor mas não levou a tal taça Brasil, o que causou o primeiro constrangimento futebolístico entre cariocas e paulistas.
Até 1908, aestatística dos confrontos entre clubes e selecionados de Rio e São Paulo mostrava ligeira vantagem para a turma do Rio: 19 vitórias "cariocas" contra 14 dos "paulistas". Cariocas e paulistas entre aspas, pois não era muito significativa a participação de brasileiros. Portanto, a observação de Leonardo Pereira [PEREIRA, p.27] sobre um maior desenvolvimento paulista do futebol em seus primeiros tempos, porque “a migração estrangeira se fez presente de forma muito mais intensa no período” não procede. Ora, futebol era para inglês ver e jogar, e existiam ingleses em número bastante nos dois Estados para praticar o esporte que eles inventaram; também muitos alemães bons de bola militavam no futebol de São Paulo. Mas os italianos, que constituíam o grosso da imigração, não eram suficientemente chiques para freqüentar, em sua maioria, os clubes da elite paulistana.
Rubens Salles, Friedenreich e Corinthians Paulista
1908 foi o ano em que apareceu nos gramados paulistas o jogador Rubens Salles, considerado o nosso primeiro craque. No ano seguinte, com o cabelo pixaim grudado com muita brilhantina, entrou em campo, aos 17 anos, o grande Arthur Friedenreich, o mais importante jogador brasileiro até os anos 30. Os dois ajudariam a balança futebolística pender para São Paulo. Em 1910, nascia o Corinthians Paulista, que injetaria o sangue do povo no futebol, dando-lhe uma cor desconhecida pelos elegantes players de então. São Paulo começava a se diferenciar do Rio. Lá estavam os craques consagrados e os futuros cobras que viriam de um clube popular.
Briga doméstica
A partir de 1911, os paulistas passaram à frente dos cariocas em seus confrontos (25 vitórias a 24) e só vão ser suplantados pelos rivais na década de 30.
Contudo, a popularização da prática do futebol não aconteceu sem traumas. O elegante Paulistano, o melhor time daqueles tempos, arrumou uma confusão com a LPF, levando outros clubes a criar a Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA). No fundo, tratava-se de uma postura aristocrática do Paulistano, que não estava gostando nada da facilidade com que pobretões ocupavam o mesmo ambiente, antes tão seleto.
A propósito, Tomás Mazzoni cita um trecho do livro História do football em São Paulo, de Antônio Figueiredo: “A seleção rigorosa, tal como a preconizavam [dirigentes do Paulistano], era um absurdo, porque um operário, desde que tenha educação, sabe se portar tão bem como um rapaz de elite. Por outro lado a corrente contrária [LPF] igualmente exagerava, porque dar, como desejava, ampla liberdade a todos, representava perigo: os maus elementos que os há em todas as classes, é certo, mas que são mais numerosos entre o proletariado, se confundiriam com os demais e dessa confusão, o futebol nada teria a lucrar” [MAZZONI, p.55]. Pois foi essa ampla liberdade que pôs o futebol de São Paulo adiante dos outros.
1914, um ano chave
1914 pode ser considerado como o ano em que o futebol se tornou realmente um esporte popular no Brasil. Para muitos historiadores, é a data inicial de contagem do século XX, quando teve início a Primeira Guerra Mundial.
Na verdade, tudo é primeiro em 1914. Nesse ano formou-se a primeira Seleção Brasileira – constituída de jogadores paulistas e cariocas – para enfrentar um time de profissionais ingleses, o Exeter City. Também foi quando se deu o primeiro jogo de nosso selecionado contra uma seleção estrangeira, a Argentina, com vitória de nossos tradicionais adversários . E quando derrotamos os mesmos argentinos, em Buenos Aires, pela primeira Copa Roca [SOTER, p.31/32].
Em 8 de junho de 1914, por iniciativa da Liga Metropolitana foi instituído o Comitê Olímpico Nacional e fundada a Federação Brasileira de Sports (FBS). Os estatutos seriam aprovadas em uma posterior assembléia.
A fundação do Palestra Itália, no dia 26 de agosto de 1914, viria dar mais oxigênio ao futebol paulista. Os imigrantes italianos pobres já tinham um clube e o engajamento do povo, como todos sabem, é fator de crescimento de qualquer atividade. No ano seguinte, o Palestra disputaria o seu primeiro campeonato pela APEA.
Com a criação da FBS, as forças começaram a se compor. A APEA (São Paulo) se liga à LMEA (Rio). A outra entidade paulista, a LPF, cujo principal dirigente era Mário Cardim, percebeu que teria de buscar no exterior um aliado, porque, internamente, em seu próprio Estado, ia perdendo substância rapidamente, com a defecção de muitos clubes importantes para a associação rival. O dirigente Mário Cardim, na tentativa de aglutinar aliados, pensou em fundar uma federação brasileira com sede em São Paulo, achando que assim, promovendo a sua entidade de regional para nacional, passaria a ter a hegemonia do futebol brasileiro. Cardim esforçou-se para obter a pacificação do futebol paulista, mas a APEA, mais poderosa no momento, não quis conversa. Este é o ponto de inflexão, momento em que São Paulo poderia ter estabelecido sua hegemonia em um novo campo, que a política dos fazendeiros de café não dominava: o do futebol. [RIBEIRO, p.120], [STORTI & FONTENELLE, s/n]
3. AS QUEDAS-DE BRAÇO (OU BRAÇOS-DE-FERRO) ENTRE CARIOCAS E PAULISTAS
A guerra iria começar. De um lado, a CBD e os cariocas; de outro, os paulistas. Objetivo: comandar o futebol brasileiro. Os cariocas saíram vencedores no campo político, mantendo a todo o transe a administração do futebol brasileiro. Entretanto, isso custou, no período da Primeira República, pesadas derrotas para a Seleção Brasileira.
Primeira queda-de-braço (ou braço-de-ferro)
Mário Cardim, principal dirigente da Liga Paulista de Futebol, antecipando-se à assembléia que homologaria a Federação Brasileira de Sports, fundou, a 25 de setembro de 1915, a Federação Brasileira de Football (FBF). A APEA não acompanhou o dirigente da LPF, preferindo estar ao lado da Liga Metropolitana.
Exasperado com a posição dos rivais regionais, a LPF publicou um “livro branco”, espécie de narrativa de acontecimentos, no qual percebia claramente que, sem a pacificação paulista, dificilmente o domínio do futebol iria para São Paulo. Do “livro branco”, reproduzido por Tomás Mazzoni [MAZZONI, p.92], destaco o trecho: “(...) Quer nos parecer que a APEA não soube ou não quis compreender que a Liga Paulista estava antes de tudo defendendo os interesses de São Paulo, procurando evitar a interferência de um órgão estranho nos nossos negócios internos [referência à LMEA] que, pelos antecedentes, não era de supor que viesse oferecer os seus bons ofícios somente pelos nossos belos olhos”.
A LPF de Mário Cardim tinha toda razão.
Somente depois da fundação da FBF, em 15 de novembro de 1915, é que foram aprovados os estatutos da rival Federação Brasileira de Sports.
A batalha da FBF contra a FBS tornou-se encarniçada. Os companheiros de Cardim sentiram que iriam perder e trataram de apelar para tudo quanto era atitude, mesmo as mais condenáveis. Tomás Mazzoni [MAZZONI, p.93] chama atenção para os expedientes da FBF: “Tanto o trabalho de unificação do esporte brasileiro, como o reconhecimento da Federação [FBS] pelas entidades internacionais, foram profundamente perturbadas pelo ingente e tenaz trabalho da LPF, representada por sua criação – Federação Brasileira de Futebol – que por todos os meios, com uma propaganda intensa fazia acreditar que a instituição de futebol mais importante era a Fundação Brasileira de Futebol, com sede em São Pauloe não a Federação Brasileira de Sports, com sede no Rio de Janeiro”.
Os dirigentes da FBF argumentavam que a denominação FBS contrariava o artigo 1o. dos estatutos da FIFA, que exigia que a denominação “futebol” fosse explícita. O trunfo que a FBF alardeava para se impor à FBS era a anuência, nunca comprovada, da associação de futebol da Argentina ao grupo paulista. Waldenyr Caldas [CALDAS, p.38] relata a pilantragem da FBF: “A Federação Brasileira de Futebol (...) chegou a blefar, anunciando publicamente ter recebido da FIFA, assinado pelo sr. A. W. Hirchmann, secretário dessa associação, que a reconhecia como única entidade a representar internacionalmente nosso futebol. Ora, tratava-se apenas de uma mentira. A FIFA não havia remetido nenhum documento reconhecendo qualquer das entidades brasileiras. Ao contrário, seu pronunciamento foi justamente o oposto àquele anunciado pela entidade paulista”.
Segunda queda-de-braço (ou braço-de-ferro)
Para o Brasil ser aceito como participante do Campeonato Sul-americano que se realizaria em Montevidéu em 1916, as entidades do continente exigiam que a situação conflituosa em que vivíamos tivesse solução. A Confederação Sul-americana de Futebol impunha a pacificação, tanto a nível regional (APEA x LPF) [MAZZONI, p.109] quanto a nível nacional (FBS x FBF) [CALDAS, p.39]. Quem resolveu o impasse foi o chanceler Lauro Müller propondo, segundo Tomás Mazzoni [MAZZONI, p.109], que se discutisse a pacificação em outro momento. Assim, as três entidades (APEA, LPF, LMEA) liberaram seus jogadores para serem convocados para a Seleção.
O fato é que a Federação Brasileira de Sports, graças à interferência e Lauro Müller no episódio, tornou-se a entidade representativa do futebol nacional, marcando o maior ponto carioca no embate com os paulistas. No dia 21 de junho de 1916, a FBS passou a chamar-se Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e, em 6 de dezembro do mesmo ano, teve seus estatutos aprovados em assembléia. No dia 29 de dezembro de 1917, aCBD era reconhecida provisoriamente pela FIFA. E os cariocas nunca mais largaram o osso. Perenizaram-se no comando do futebol brasileiro, valendo-se de artimanhas legais e de outros expedientes não muito democráticos, como as pressões irresistíveis exercidas sobre as filiadas, principalmente nos momentos de eleições para a presidência da Confederação.
Até hoje os paulistas choram a derrota. Eis o lamento de Rubens Ribeiro [RIBEIRO, p.213]: ”Houve muita luta e jogo de interesse político para permitir que o Distrito Federal ficasse com o comando. A participação do ministro Lauro Müller foi decisiva, enquanto por São Paulo faltou união entre os desportistas. Se todos se unissem em torno da Federação Brasileira de Futebol, muito provavelmente São Paulo poderia, nos dias atuais, ser a sede da CBF”.
Em 1918 aconteceu a pacificação paulistana. A LPF foi extinta, ficando a APEA como entidade máxima do futebol bandeirante. Mário Cardim, o grande batalhador pela hegemonia de São Paulo, com o fim de sua Liga, transferiu-se, como era esperado, para a associação vencedora. Rubens Ribeiro [RIBEIRO, p.120] decreta, lastimando por Mário Cardim: “A batalha fora perdida”.
Terceira queda-de-braço (ou braço-de-ferro)
O término da cisão paulista produziu também o término da união APEA-CBD. Quem sabe, a presença do belicoso Mário Cardim estivesse na raiz das desavenças, perfeitamente contornáveis, que logo indisporiam São Paulo contra a Confederação?
O Campeonato Sul-americano, que deveria se desenrolar no Rio em 1918, fora suspenso em virtude da tenebrosa gripe espanhola. Nesse meio tempo, a CBD enviara dinheiro, a título de ajuda de custo, para os jogadores Neco, Amílcar e Friedenreich se deslocarem para a capital federal.
Transferido o certame para 1919, a CBD pediu o dinheiro de volta, pois os treinamentos para o torneio haviam sido suspensos. Os jogadores alegaram que tinham gasto tudo em preparativos para a viagem. A CBD, zelosa dos valores amadorísticos, entendeu a resposta como uma atitude típica de profissionais, intimidando os três com promessa de punição. A APEA logo ficou ao lado de seus atletas, ameaçando não permitir que jogadores paulistas fossem defender a seleção no Sul-americano de 1919. A agremiação paulista chegou a se dirigir às entidades do Prata solicitando que não fosse realizado o Campeonato Sul-americano [MAZZONI, p.135].
A essa altura, São Paulo possuía, disparado, os melhores jogadores. O único grande nome carioca era o goleiro Marcos Carneiro de Mendonça. O escritor Coelho Neto entrou em cena, entendendo-se com a APEA e conseguindo solucionar o problema: a CBD esqueceria a dívida e São Paulo colocaria seus formidáveis craques à disposição do escrete [SOTER, p.35].
Quarta queda-de-braço (ou braço-de-ferro)
Aproximava-se o Campeonato Sul-americano de 1920. Dos 22 convocados, conforme noticiava o Correio da Manhã, da Capital Federal, de 17 de julho de 1920, 13 eram de São Paulo, oito do Rio e um gaúcho. Havia muita confiança no selecionado que iria ao Chile defender o título conquistado no ano anterior.
Entretanto, no dia 30 do mesmo mês, o Correio da Manhã, que era uma espécie de órgão da imprensa ligado aos bastidores da CBD, contando, em primeira mão, tudo o que se passava na Confederação, tremeu: “Crise no futebol? E o Sul-americano?”. E relatou o motivo de sua preocupação: “Correu pela cidade um assustador boato que, envergonhando-nos bastante, tem de ser registrado para que se veja até que ponto chegou o clubismo e o bairrismo de muita gente que se quer mostrar em posição elevada nos esportes, posição que não pode conseguir com atos que vamos registrar”. Seguiu falando da apreensão do sr. Ferreira Vianna, o encarregado da CBD para organizar o time brasileiro: “Sondando os motivos dessa apreensão e mutismo, conseguimos saber que São Paulo pretende negar jogadores para o scratchnacional sob uma alegação fútil e mesquinha de uma taça cuja posse muito se discute atualmente”. Tratava-se da Taça Ioduran.
A Taça Ioduran fora instituída por uma produtora de produtos farmacêuticos que levava esse nome. Era para ser disputada, na capital federal, entre os campeões do Rio e de São Paulo. A de 1918 reuniu os campeões de 1917, Fluminense e Paulistano, ficando este na posse temporária da Ioduran (a definitiva era para quem a conquistasse em dois anos seguidos) [PEREIRA, p.158]. As duas agremiações voltaram a vencer seus campeonatos regionais de 1918 e deveriam se enfrentar em 1919.
Ocorre que, em 1919, a APEA e a Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), novo nome da Liga Metropolitana de Esportes Atléticos desde 1917, se desentenderam por causa da transferência do jogador Palamone do Mackenzie (São Paulo) para o Botafogo (Rio). A APEA negara a transferência do atleta e a Metropolitana defendera o seu clube. Por seu turno, a CBD tendia a aceitar a transferência. Por essa época chegara a data de Fluminense e Paulistano disputarem a Ioduran. Como APEA e LMDT estavam de relações cortadas, o Paulistano não compareceu e o Fluminense considerou-se vitorioso por WO (walk-over), ou seja, quando uma agremiação não comparece a um jogo marcado é tida como derrotada.
Em 1920, o Fluminense queria que o Paulistano lhe entregasse a Taça, o Paulistano dizia que não, que se marcasse novo jogo, o Fluminense respondeu que novo jogo, nunca, que o Paulistano, então ficasse com a Taça, mas que ficasse sabendo que levara a Taça na mão-grande, o Paulistano declarou-se ofendidíssimo com essa arrogância do Fluminense. E a Taça não ficou com ninguém. Tempos depois, para dar um fim na história, ela foi doada ao museu do Ipiranga; ficaria em São Paulo, mas nem com o Paulistano nem com a APEA.
Por causa dessa pendenga da Taça Ioduran, os paulistas estavam caminhando para não dar jogadores para o escrete.
No Rio, não se acreditava muito nisso: o motivo era por demais frívolo.
O Correio da Manhã, de 3 de agosto, abre a manchete: “O caso da Taça Ioduran”. E o texto diz: “Já se vai tornando irritante essa velha questão da Taça Ioduran”. Acerca da reunião entre dirigentes da Confederação e da APEA, que se realizara na véspera, o repórter do jornal ouviu do representante paulista, sr. Pereira de Queiroz, que São Paulo não daria jogadores.
A APEA continuava firme na sua postura a respeito de um novo jogo pela Ioduran; se não, nada feito. A CBD propôs que fosse criada uma comissão para arbitrar a questão. O Correio da Manhã, de 10 de agosto denuncia: “O Paulistano, influenciado através de seu representante Mário Cardim, rejeita a proposta de arbitramento feita pela CBD”.
Em desespero, o presidente da CBD, o major Ariovisto Pereira Rego, apelou para o presidente do Estado de São Paulo, Washington Luís. O máximo que conseguiu foi a determinação da APEA de dar liberdade aos clubes para liberarem seus jogadores, mas que não iria parar o campeonato paulista por causa disso.
E lá se foi o escrete sem os craques paulistas para o Chile pagar o maior vexame de sua história futebolística, a goleada de 6 a0 imposta pelo Uruguai.
Quinta queda-de-braço (ou braço-de-ferro)
Em 1921 a APEA continuava desinteressada em contribuir com a CBD. O desprezo era tanto que, pela primeira vez, desde 1914, aAPEA não se dignou a formar um selecionado para jogar contra o do Rio. Por mais incrível que pareça, a mágoa declarada era o caso Ioduran. Mas a mágoa verdadeira era a CBD estar dominada pelos cariocas. O presidente da CBD, recém empossado em maio de 1921, foi a São Paulo tentar modificar a posição dos paulistas. Não conseguiu.
Mas eis o inesperado: em Buenos Aires, o Brasil, contando apenas com jogadores do Rio, tornou-se o vice-campeão continental, ficando à frente dos poderosos uruguaios. Foi tão surpreendente a atuação brasileira que quase conseguimos o título. Na partida contra os argentinos, a nossa Seleção perdeu o atacante Nonô, aos 10 minutos de jogo. Como não havia substituição, o escrete atuou desfalcado até o fim. Depois da saída de Nonô, a Argentina fez 1 a 0, placar do jogo. O Brasil bateu amplamente o Paraguai por 3 a0 e, contra o Uruguai, segundo os jornalistas locais, a arbitragem beneficiou os orientais (é como os uruguaios eram comumente chamados por nós), influenciando na nossa derrota por 2 a1. Ficamos em segundo pela média de gols. São Paulo olhou um tanto preocupado para a ascensão futebolística dos jovens cariocas. Nomes como o goleiro Kuntz, o médio Laís e os atacantes Zezé e Machado, já podiam se ombrear aos consagrados paulistas Amílcar, Friedenreich, Neco e Formiga.
Sexta queda-de-braço (ou braço-de-ferro)
Tomás Mazzoni não deu muita importância ao fato, mas De Vaney [DE VANEY, p.161] culpou a CBD, atribuindo a esta a razão pela qual o Brasil se fez representar, no Sul-americano de 1923, em Montevidéu, por um quadro sem a presença, mais uma vez, de paulistas.
O fato relatado por Tomás Mazzoni [MAZZONI, p.174] foi o seguinte: Vasco e Corinthians, campeões de suas ligas, deveriam jogar uma partida no Rio a convite da entidade carioca. O Corinthians veio, mas o adversário indicado pela LMDT foi o Flamengo, que disse que esse compromisso não estava previsto e se negou a participar do evento. O Fluminense, para evitar confusão, se dispôs a enfrentar o Corinthians, que não topou, afirmando que o tricolor carioca atravessava má fase. O Corinthians voltou para São Paulo sem jogar.
Um parênteses sobre o Vasco. A sua subida para a primeira divisão em 1923 – e logo ganhando o campeonato – iria impulsionar o futebol carioca, pois suburbanos pobres estavam tendo a sua vez. Tal como aconteceu em São Paulo, a rapaziada da elite chiou, indo formar, no ano seguinte, uma outra liga (a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos – AMEA, que se sobreporia à anterior), mais pura, sem os indesejáveis profissionais. Sim, porque os suburbanos, que ganhavam dinheiro de seus patrões lusitanos, estavam disfarçados em empregados das lojas de secos e molhados.
Para De Vaney, a desconsideração da Liga Metropolitana para com o Corinthians não fora punida pela CBD, gerando, com isso, essa nova crise. A APEA queria castigo para Vasco e Flamengo. Como tal não ocorreu, a APEA rompeu relações com a Confederação e, em conseqüência, decidiu não deixar que seus jogadores defendessem a Seleção no torneio continental.
O Imparcial, do Rio, em 31 de outubro de 1923, dá a notícia: “A Associação Paulista rompe com a Confederação. A APEA vai formar uma nova Confederação. Motivo: o caso Corinthians-Vasco”.
A dissensão ocorreu em cima do embarque do time brasileiro, que iria estrear na competição no dia 11 de novembro. Na edição de 1o. de novembro, O Imparcialvolta à carga com o artigo intitulado “Estava tardando”, dando um quê de covardia à atitude paulista: “Aproxima-se a data em que São Paulo não poderá ceder seus jogadores em vista de terem que enfrentar um time uruguaio. O hábito já é tão antigo e assim não pode causar estranheza a ninguém”.
O Imparcial estava lavando as mãos e colocando a pecha de covardia em cima dos paulistas, mas não dizendo que a própria CBD e os clubes cariocas estavam ressabiados com o torneio em Montevidéu.
É que, no ano anterior, em 1922, por ocasião da disputa do Sul-americano no Rio, os uruguaios abandonaram a competição alegando estarem sendo garfados pelos árbitros, especialmente pelo brasileiro, que fez coisas incríveis contra eles na partida com o Paraguai, tirando-lhes o título e jogando-os para uma melhor de três com os próprios guaranis e o Brasil.
Por causa desse abandono, a CBD cortou relações com a associação uruguaia, daí o temor de participar de um torneio em Montevidéu.
Por outro lado, a CBD sentia-se mais forte, pois, a 23 de maio de 1923, obtinha a filiação definitiva à FIFA. Dentro de um novo espírito conciliatório, fazendo parte da entidade maior do futebol mundial, a CBD teve ânimo para encarar o Sul-americano. Os clubes do Rio não estavam tão animados assim e se escamaram da convocação. Acabou seguindo um time que não representava a verdadeira força do futebol carioca. A base era o Vasco, contando também com atletas da cidade de Campos e da Bahia. Apesar de ficarem em último, numa competição com quatro países, as atuações da equipe brasileira foram muito boas, enfrentando de igual para igual argentinos e uruguaios. O azar foi perder de cara para o Paraguai. A seleção revelou o jovem Nilo Murtinho Braga, que iria se tornar um dos maiores ídolos do futebol brasileiro [SOTER, p.44].
Esta não seria a última queda-de-braço (ou braço-de-ferro) entre cariocas/CBD e paulistas. As brigas que ocorreram até 1930 foram espasmos que prenunciavam nuvens negras, não só na política nacional como na política esportiva.
Por exemplo, em um jogo entre os selecionados carioca e paulista, em São Januário, em 1927, o time de São Paulo decidiu se retirar de campo, porque o árbitro marcara um pênalti contra os paulistas. Apesar da solicitação do presidente da República Washington Luís, presente na tribuna de honra, para que os bandeirantes não abandonassem o terreno, os jogadores paulistas o fizeram [MÁRIO FILHO, p.210], [DE VANEY, p.7] [MAZZONI, p.204/205].
Em 1928, alegando que a CBD não atendera a tempo a sua solicitação para que a final do campeonato brasileiro de seleções regionais fosse disputada em uma melhor de três, a APEA se sentiu desprestigiada e resolveu não participar desse torneio [MAZZONI, p.208]. No ano seguinte, nas finais do campeonato brasileiro (nos moldes melhor de três, como a APEA queria), no primeiro jogo, São Paulo venceu o Distrito Federal no Rio, por 4 a 1, com os cariocas reclamando da arbitragem. O segundo jogo seria em São Paulo, no Parque Antártica. O juiz carioca, por causa da chuva decidiu não começá-lo, adiando a partida. Os torcedores locais, imaginando ser uma manobra dos rivais, foram ameaçar fisicamente os jogadores cariocas no hotel onde estavam hospedados [MAZZONI, p.217].
A GRANDE CRISE DE 1930
Do Relatório Oficial de 1930 da APEA:
“Em princípios do corrente ano, a diretoria da APEA pleiteou junto à CBD a nomeação de um dos membros de sua Comissão de Esportes para integrar a comissão da entidade nacional, encarregada de organizar o selecionado que representaria o Brasil no I Campeonato Mundial de Futebol.
Essa pretensão da Associação foi mal recebida pela CBD que primeiramente com protelações e afinal com a recusa franca, indeferiu o nosso desejo.
Nessas condições, a Associação, para evitar a continuação das humilhações por que a CBD a fazia passar, recusou a cooperar com seus jogadores para formar o selecionado brasileiro.
Finalmente a 12 de junho de 1930 chegou a resposta da Confederação Brasileira de Desportos, declarando que não podia atender ao pedido da APEA, porque seus estatutos fixavam em três os membros da comissão e estes já estavam nomeados e eram os srs.: dr. Píndaro de Carvalho Rodrigues, dr. Egas de Mendonça e Gilberto de Almeida Rego, esqueceu-se no entanto, o sr. Presidente da CBD que já tinha aumentado para cinco os membros da aludida comissão, nomeando como adidos à mesma os drs. João Paulo Vinelli de Morais e Fábio de Oliveira.
(assinado): Elpídio Paiva Azevedo, presidente da Associação Paulista de Esportes Atléticos."
Em torno desse relatório ( na verdade, uma justificativa da APEA), divulgado para a imprensa e publicado, no Rio, em 14 de junho de 1930 pelo O Globo, se fixaram as interpretações a respeito dos motivos pelos quais São Paulo e a CBD entraram em conflito. Com base nesse texto e escudados pela posição diante do fato, tomada pelo importante historiador Tomás Mazzoni [MAZZONI, p.221/222], grande parte dos autores chega à conclusão de que tanto a CBD como a APEA erraram, lamentando a falta de compreensão dos dirigentes. A minha análise conduz o assunto diferentemente.
Não houve mal-entendido, houve, isto sim, uma disputa acirrada pelo poder. Com a mesma facilidade encontrada por Washington Luís para impor Júlio Prestes como o candidato à sua sucessão, descartando acordos tradicionais com os mineiros [FAUSTO, p.97], [FERREIRA & PINTO, p.391], pouco se lixando para que os outros pensassem, a APEA decidiu que não colaboraria com o escrete nacional. A cartada de Washington Luís era respaldada pelo poder econômico que estava com São Paulo; o poder da APEA, para realizar seu lance, estava na qualidade insuperável de seus jogadores.
Mais ainda, na disputa pelo poder não interessava à APEA colocar azeitona na empada da CBD. Seria a maior competição internacional da qual o Brasil faria parte. Se vencesse, os louros ficariam com a CBD, tornando-a mais forte. O sentimento de autonomia, tão presente no ideário paulista, se fez presente.
Vivíamos o momento crucial de 1930. Com toda certeza, as correlações, quer políticas, culturais ou esportivas, foram afetadas por aquele momento. Se não foi isso o que ocorreu, a grave crise permanecerá envolta em mistério, pois os motivos apresentados pela APEA são por demais pífios para serem aceitos sem contestação.
Os protagonistas
Renato Pacheco, o presidente da CBD, e Elpídio Paiva Azevedo, presidente da APEA, foram os protagonistas. Os demais participantes do drama atuaram como figurantes. Jogadores, imprensa e os outros dirigentes, tanto da CBD como da APEA, surgiram apenas para compor as cenas. Esses outros dirigentes, provavelmente, tiveram importante participação, mas não tiveram seus nomes diretamente citados nos acontecimentos.
As personalidades de Renato Pacheco e de Elpídio Paiva Azevedo, por conseguinte, ajudaram a escrever a história.
Renato Pacheco, desde outubro de 1927 era o presidente da CBD. A sua defesa intransigente do amadorismo, o seu extremo moralismo, a sua postura inarredável dos aspectos legais, tornavam-no, diante de seu exacerbado rigor, um prato cheio para provocações. Não arredava pé de suas convicções. Um exemplo disso, que ficamos sabendo, se deu em 1932, na Copa Rio Branco disputada no Uruguai. Renato Pacheco tinha horror a Leônidas da Silva, pois havia uma acusação, jamais provada, de que o Diamante Negro roubara um colar de uma dama santista. Isso era motivo suficiente para não querer ver Leônidas nem pintado. Então, o dr. Renato – que é como o tratavam respeitosamente – exigiu que Leônidas não fosse escalado contra o Uruguai. Enquanto, na Copa Rio Branco de 1932, Leônidas entrava em campo pela porta do vestiário, o dr. Renato saía da CBD pela porta da frente, em licença, substituído pelo major Ariovisto Rego [PEREIRA, p.322/323]. O dr. Renato cumprira o que prometera: enquanto fosse presidente da CBD, Leônidas não envergaria a camisa da Confederação.
Elpídio de Paiva Azevedo era um obscuro desportista. Tomás Mazzoni, escritor atento aos detalhes, ao reproduzir o texto que encabeça este capítulo, o do Relatório Oficial da APEA, não citou o nome do dirigente paulista que era, para todos os efeitos, o autor do documento. Como se dava normalmente naqueles tempos, os dirigentes vinham de clubes. Talvez confirmando a máxima de João Saldanha, que todos têm que torcer por algum clube, pois ninguém é filho de chocadeira. O clube de Elpídio de Paiva Azevedo não era o Corinthians, o São Paulo da Floresta, o Palestra Itália, a Portuguesa de Desportos ou o Santos. Era o Ypiranga, 12o. colocado no campeonato paulista de 1929, piorando um pouco no de 1930: 13o. entre 14 agremiações. Seu poder político entre seus pares era, portanto, muito fraco. E, portanto também, sujeito a influências dos demais, conforme se pode deduzir a partir de artigos de jornais, como ressaltarei adiante.
Se o dr. Elpídio era fraco politicamente, o dr. Renato, para ser dobrado, teria que sê-lo através de táticas especiais que, embora não ferissem as leis em vigor, teriam que contorná-las.
A constituição da Comissão Técnica para a Copa
Devido a determinações da FIFA, a CBD teria que incluir médicos na Comissão Técnica. Assim, a 9 de abril de 1930, foram admitidos dois novos membros nesse órgão, os médicos João Paulo Vinelli de Moraes e Fábio de Oliveira. Um dos membros da Comissão era o médico Píndaro de Carvalho Rodrigues, que a CBD pretendia utilizar mais por seus conhecimentos futebolísticos (campeão sul-americano de 1919) do que pelo que sabia de medicina. Os outros dois membros, que já estavam na Comissão Técnica, eram Egas de Mendonça e Gilberto de Almeida Rego.
Olhando de novo o documento que o dr. Elpídio escrevera, justificando a ausência de São Paulo na Copa de 30, dá para reparar o argumento falacioso de que a CBD aumentara de três para cinco os membros da Comissão Técnica. Sim, o fizera, mas por exigência da FIFA de introduzir médicos na equipe. Isso o dr. Elpídio não disse, dando a impressão que esses dois novos membros seriam pessoas ligadas à parte técnica. Na verdade, nem o dr. Vinelli de Moraes nem o dr. Fábio de Oliveira iriam seguir para Montevidéu; iriam trabalhar aqui no Brasil, verificando a saúde dos craques.
No dia seguinte, 10 de abril, com a Copa em pauta, os dirigentes da CBD encaminharam a questão do chamamento dos melhores jogadores da APEA e da AMEA, as quais deveriam providenciar a escolha de seus craques.
Ao comentar a formação da Comissão Técnica, o Estado de S.Paulo chia bastante na sua edição de 10 de abril, reclamando a presença de paulistas na Comissão Técnica e duvidando que os cariocas conhecessem os jogadores que estavam surgindo em São Paulo. A reunião da CBD, no mesmo dia, dava mostras de que essa escolha caberia à Associação Paulista.
Píndaro de Carvalho vai a São Paulo
A CBD iniciou seus trabalhos, sob os holofotes paulistas, mandando Píndaro de Carvalho fazer contatos com a APEA em São Paulo, terra natal do prócer cebedense. Píndaro acertou que os treinos iniciais a serem realizados em São Pauloteriam a participação exclusiva dos paulistas, assim como nos do Rio, somente dos cariocas.
O Estado de S.Paulo procurava um motivo para discordar. Ainda não sabia bem qual deveria ser, mas não custava nada dar uns chutinhos a esmo para ver o que aconteceria. Em 17 de abril, comenta a passagem de Píndaro por São Paulo: “Andou por São Paulo, como foi noticiado, um emissário da Confederação Brasileira de Desportos, que veio cuidar de assuntos que se prendem à organização do selecionado nacional. Os jornais do Rio afirmam que ele viria escolher os jogadores paulistas”. Estava lançado o veneno.
Prossegue O Estado de S.Paulo: “Os esportistas daqui, como era natural, estranharam que a referida missão fosse confiada a um cavalheiro, estimável sem dúvida, mas que desconhecia inteiramente o nosso meio. Tratava-se do Dr. Píndaro de Carvalho, antigo defensor do Flamengo, futebolista valoroso dos tempos idos. Eram credenciais bastante para que, num golpe de vista, ficasse sabendo quais eram, no momento, os melhores elementos dos nossos campos? Está claro que não eram. Há anos que o veterano esportista se acha afastado da nossa capital! Conhecia apenas o selecionado paulista que disputou o último campeonato brasileiro e mais nada".
A primeira convocação
Os treinamentos no Rio tiveram início a 22 de abril. Como os contatos com São Paulo estavam indo muito devagar, no dia 25 de abril a CBD partiu para a ação, perguntando à APEA se ela poderia ceder jogadores. Tudo na maior educação: “Devendo esta Confederação Brasileira de Desportos mandar no próximo mês de julho à cidade de Montevidéu, onde se realizará o I Campeonato Mundial de Futebol, promovido pela FIFA, a sua representação, venho indagar se os amadores constantes da lista anexa [segue uma lista com 22 jogadores, mais Amílcar Barbuy, praticamente na inatividade como atleta, pois tinha jogado sua última partida em 1929] poderão prestar o seu concurso”.
Os jogos pela "caixa olímpica"
A CBD quis aproveitar a data de 1o. de maio, quando se comemorava o Dia do Trabalhador, para promover eventos esportivos tanto no Rio quanto em São Paulo. Além da Copa do Mundo, a CBD estava pensando nos Jogos Olímpicos de 1932, em Los Angeles. Paraconseguir dinheiro para as Olimpíadas foi instituída a “caixa olímpica”. A Confederação gostaria, como atração das festividades, de ter a presença dos melhores jogadores de Rio e São Paulo. Entretanto, os paulistas não puderam ir ao Rio. A APEA desculpou-se, em carta de 22 de abril, mais tarde transcrita pelo Correio da Manhã, de 2 de julho de 1930: “Sobre a realização dos jogos Rio vs. São Paulo, no 1o. de maio, nada foi possível conseguir-se no sentido de fazer seguir o combinado paulista. Quando da visita aqui do Dr. Píndaro de Carvalho ficou assentado que o primeiro jogo Rio vs. São Paulo seria no dia 23 ou 24 aqui, e o outro, a 7 de maio, no Rio (...) Apresentada a nova fórmula para os jogos do 1o. de maio, alegam os clubes que, tendo partidas pelo campeonato nos dias 3 e 4, ficarão seus elementos cansados”.
A delicadeza da missiva, onde não se pleiteava nada do tipo participação paulista na Comissão Técnica, mostrava a tranqüilidade que os entendimentos estavam tendo.
As festividades para arrecadar dinheiro para a “caixa olímpica” aconteceram no Rio e em São Paulo. Na capital federal jogaram as seleções A e B da AMEA, com um empate em dois gols. Em São Paulo, resumiu-se a uma partida amistosa entre o Ypiranga (do presidente da APEA) e o Internacional da capital, também com um empate: 0 a 0.
Céu de brigadeiro
O primeiro treino conjunto foi marcado para o dia 10 de maio, no Rio. A CBD relacionou 17 jogadores de São Paulo (Amílcar não estava nessa) e 15 do Rio. Ao mesmo tempo a CBD solicitou que as ligas do Rio e de São Paulo interrompessem seus campeonatos, para que os treinamentos fossem contínuos até o embarque para Montevidéu.
Os paulistas foram ao Rio e, a 14 de maio, aconteceu o primeiro treino com jogadores dos dois centros.
Para o treino seguinte, em São Paulo, seguiram o diretor-técnico Píndaro de Carvalho, o dirigente Gilberto de Almeida Rego (que atuaria como árbitro na Copa) e o médico Vinelli de Moraes, acompanhando os jogadores Itália, Zé Luís, Fausto, Martim, Benevenuto, Doca e Moderato.
Feliz da vida, O Estado de S.Paulo, de 20 de maio, diz: “Temos sempre prazer em voltar atrás, todas as vezes que as autoridades esportivas mudam de orientação. Até aqui, estranhamos a ação morosa, e um tanto egoísta dos diretores da entidade nacional. Pois, agora, verificamos, com alegria, que esses diretores estão procedendo com muito critério e de maneira elevada. Nunca negamos elogios a quem os mereça, apreciando os fatos esportivos, procuramos fazer justiça, pouco se nos dando as pessoas que neles se acham envolvidos. Fomos severos até há pouco, quando nos referimos a esse assunto; temos agora que mudar de atitude, recebendo de bom grado todas as iniciativas que emanem da CBD. Se esta prosseguir no caminho que hoje palmilha, acreditamos que a nossa representação fará um papel brilhantíssimo em Montevidéu”.
No dia 21 de maio, no campo da Floresta, com todos os craques do Rio e de São Paulo o time A derrotou o B por 4 a 3. Amílcar Barbuy estava por ali, mas só observando.
A animação era geral. O treino seguinte, no Rio, reuniria a turma de São Paulo completa. A delegação paulista foi chefiada por Amílcar Barbuy, aquele ex-atleta, mas convocado como jogador pela CBD. Parecia ter coisa ali. E tinha. Amílcar poderia ir como o jogador e ser, na realidade, o auxiliar de Píndaro de Carvalho. Na qualidade de jogador ele não alteraria a composição da Comissão Técnica e, na prática, dela tomaria parte. Essa era a carta na manga que a CBD estaria guardando para não ferir os seus estatutos.
O treino se deu em 28 de maio e a equipe B derrotou a A por 3 a 2.
Essas atividades da seleção brasileira começaram a criar um grande rebuliço. Discutia-se qual seria a melhor esquadra que o Brasil poderia apresentar. Amado, Joel, Jaguaré, Athiê ou Nestor, qual o melhor goal keeper? O trio final, sem dúvida, deveria ser Amado, Grané e Del Debbio. E o center-half? Fausto, Bisoca ou Oscarino? O jornal A Noite, do Rio, abrira este tipo de discussão, que tomava o Rio de Janeiro.
A bomba é armada
Quase junto com o treino de 28 de maio, chegava um ofício da APEA para a CBD, datado de 26: “(...) outro fato, pelo qual peço a atenção de V. Excia., é de não ter sido escalado nenhum dos membros desta Associação para fazer parte da comissão encarregada de formar a Seleção Brasileira, o que não só julgamos como nosso direito, dada a importância da representação, como também de toda a vantagem para a formação do scratch, que teria assim um orientador sobre a eficiência dos paulistas. No entanto, V. Excia, tomando conhecimento destas ponderações, resolverá o que ditar o seu elevado critério”.
O fato histórico é difícil de ser percebido na hora; os seus desdobramentos é que ditarão o que irá acontecer. Quem imaginaria que o assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro iria desencadear a Primeira Guerra Mundial? Quem poderia adivinhar que esse ofício da APEA se tornaria um cavalo-de-batalha?
Note-se que era a primeira vez que a APEA falava em ter um membro seu na Comissão Técnica. Sem dúvida, a presença de Amílcar Barbuy não era o suficiente para a APEA: precisava de ser algo oficial. Ou seja, estava chamando o dr. Renato para a briga. Mesmo assim, o dr. Elpídio deixava a decisão para o elevado critério do dr. Renato, que ele já sabia qual seria.
A CBD segurou o ofício, não respondendo. Ganhava tempo, esperando que as coisas se normalizassem.
Não demorou muito, outro cutucada da APEA, mandando novo ofício no dia 28, lembrando que os prazos para inscrição estavam em cima.
Nesse morde-e-assopra, a APEA reafirmava, no dia 29, que todos os jogadores paulistas convidados estavam à disposição da CBD. Essa atitude, aparentemente esquizofrênica, tinha um sentido: tornar a CBD responsável por quaisquer transtornos que impedissem a APEA de liberar seus atletas.
Era a hora em que Prokofievmandava o coro entoar o assustador fundo musical do lobo em “Pedro e o lobo”. Hora do susto.
O jogo fica pesado
A CBD, com certeza, desconfiava que havia algo no ar. Contudo, não parecia perceber aonde queria chegar a APEA. A Confederação dava curso a seus preparativos, solicitando às filiadas que interrompessem, a partir de 30 de maio, seus campeonatos. Se a APEA não interpusesse obstáculos ao pedido da CBD, o mau presságio em relação à entidade paulista teria sido um sonho pessimista, jamais um pesadelo.
No dia 7 de junho, a APEA anunciou que os clubes que cedessem jogadores à Seleção teriam seus jogos suspensos no campeonato paulista a partir de 9 de junho. A decisão da APEA demonstrava o seu ânimo colaborador; a CBD, por seu turno, deve ter acreditado que aqueles ofícios reivindicatórios da APEA poderiam ser considerados como um simples mau pensamento, nada que lhe pertubasse o sono.
É interessante notar que a grande imprensa paulista não fazia parte da copa-e-cozinha da APEA, ao contrário do que acontecia no Rio em relação à Confederação nacional: o Correio da Manhã sabia de tudo e A Noitedava palpites que, misteriosamente, passavam a fazer parte do planejamento da CBD. O Estado de S.Paulo, pelos seus artigos, mostrava que ele estava ali para defender os interesses de seu Estado, não o de sua Associação de futebol.
A matéria de 6 de junho de O Estado de S.Paulo comprova o seu distanciamento da APEA. “Alguns campeões não estavam querendo viajar para o Uruguai, mas reconhecemos que os dirigentes da Confederação muito se esforçaram para que os laureados esquivos não efetivassem a sua resolução”.
O jornal paulista, nessa edição, chega a ser ingênuo em suas críticas, muito banais em face da tormenta que se avizinhava: “Não se pense que a Confederação atendeu a todas as críticas”. Sabendo o que se tramava, essa observação nos teria deixado de cabelo em pé, pensando que viria um ataque ao Rio ou à ausência de paulistas na Comissão Técnica. Mas não, O Estado de S.Paulo iria dar palpites sobre escalação de jogadores: “No que toca a questão dos centro-médios, até agora sustenta o ponto de vista que consideramos falho. Assim não realizou as experiências que alguns jornais indicaram, e que consistia no aproveitamento de um ou outro dianteiro. Vão ser designados Bisoca, Fausto e Gogliardo, e como reserva irá Amílcar Barbuy, que se achava afastado”. Ou seja, a CBD era feia e boba, quando esperávamos um xingamento maior, dadas às turbulências que se desenhavam.
Também é interessante notar a estranheza do jornal com a convocação de Amílcar. Não reclamou mais porque Amílcar era um antigo ídolo do futebol paulista. Mas o que fazia aquele aposentado ali?
Entrementes, o jogo continuava. Depois de a APEA ter movimentado a sua peça, acatando a idéia de suspender o campeonato paulista, a CBD acreditou que o jogo estava à sua feição e lançou seu bispo na diagonal, marcando um treino para o dia 13 de junho, na capital federal. Acabara a fase de mexer só com peões.
Três dias que abalaram o Mundial
A CBD quis se assegurar do êxito de sua empreitada. Se o treino iria ser no dia 13, então as providências, para que nada fugisse ao controle, deveriam ser tomadas antecipadamente. Segundo os acertos, os jogadores paulistas deveriam estar na estação de trem de São Paulo na manhã do dia 10, uma segunda-feira.
No sábado, dia 7, o tesoureiro da CBD, Samuel de Oliveira, o homem encarregado de soltar o dinheiro das passagens, telefonou para a APEA e foi atendido pelo secretário-geral, Ennio Juvenal Alves. Então, combinaram as medidas necessárias para o embarque da delegação (Correio da Manhã, 2 de julho de 1930).
No fim-de-semana, o pessoal da CBD constatou que cometera um erro: convocara o goleiro Nestor, que não era para ser chamado. Bem cedo, na segunda-feira, o tesoureiro da Confederação ligou para a APEA e não encontrou nenhum dirigente. Falou com um funcionário de menor importância, avisando que a viagem de Nestor havia sido sustada (Correio da Manhã, 2 de julho de 1930).
Não apareceu Nestor e nenhum outro jogador paulista na estação de trem do Rio. E agora? A bomba de efeito retardado havia sido acionada; não só o bispo fora derrubado, como o tabuleiro fora sacudido, com as peças todas no chão.
Nesse mesmo dia, 10 de junho de 1930, aAPEA encaminhou um ofício à CBD. Dizia o dr. Elpídio: “No dia 23 de maio dirigi a V.Excia um ofício no qual pedia a atenção ao fato de não ter sido escalado nenhum membro dessa Associação para fazer parte na comissão encarregada de formar o selecionado brasileiro. Após esta data, já uma turma de jogadores de São Paulo seguiu para essa capital, continuando a direção da Associação posta à parte da importante tarefa. Agora chega de novo ao conhecimento da APEA, por comunicação telefônica do Sr. Tesoureiro dessa Confederação, de que quinta-feira próxima haverá novo treino, e que estão convocados alguns dos jogadores paulistas (...) E, enquanto esta Associação permaneça no esquecimento oficial da CBD, pessoas estranhas a esta entidade se permitem fornecer notícias à imprensa, a indicar elementos, a deturpar assim a verdadeira finalidade que deve ter a comissão técnica da CBD” (Correio da Manhã, 2 de julho de 1930).
No dia 11, O Estado de S.Paulo , sem dúvida desconhecendo o que ocorria dentro da APEA, falava sobre o selecionado: "Vai ser suspenso o campeonato regional, a fim de que a Confederação, livre de quaisquer peias, se entregue, definitivamente, ao preparo da turma nacional que seguirá no próximo mês. De hoje até o dia seis ou sete de julho, tem ela vinte e seis dias para trabalhar. É, pois, o mês dos últimos retoques”.
Nisso, aconteceu uma decisiva conversa telefônica entre os presidentes da CBD e da APEA. A Noite, de 13 de junho, de acordo com o Correio da Manhã de 2 de julho, conferiu o teor do telegrama da CBD para a APEA e reproduziu a conversa telefônica: "Como a base do argumento para a negativa da APEA em ceder seus jogadores estava o fato da Comissão Técnica estar constituída sem nenhum paulista, (...) o presidente da CBD, Renato Pacheco lembrava que os estatutos da CBD foram aprovados pelas filiadas, inclusive pela APEA, que enunciava que a composição da Comissão Técnica seria com três membros idôneos. Píndaro de Carvalho (médico), Egas de Mendonça e Gilberto de Almeida Rego, e estavam funcionando dentro da lei. Sobre a exigência de um membro paulista na Comissão Técnica, o presidente Renato Pacheco esclareceu que o regime presidencialista lhe dava o direito de escolha, e quanto à exigência da FIFA sobre a necessidade de ficha médica para os jogadores, foram incluídos dois médicos – Vinelli de Moraes e Fábio de Oliveira – para examinar os amadores. Contestando uma observação feita pelo presidente da APEA, de não haver critério na seleção, pois que elementos de valor como Ministrinho, Feitiço e outros, não estavam designados, o presidente da CBD disse que escapava da alçada da APEA qualquer observação, mesmo por que deveria acatar os conhecimentos destes sportmen, dentre os quais Píndaro de Carvalho, elemento conhecido e, além do mais, paulista".
O dr. Renato, nesse dia 11, muito irritado, mandou um telegrama para o dr. Elpídio: "os pedidos formulados por V.Excia sobre a Comissão Técnica de futebol da CBD, como inadvertidamente V.Excia. pensa ser seu direito, não podem ser aceitos, por contrariarem dispositivos claros das leis em vigor. Peço a sua esclarecida atenção para o art. 15, do Código de Football, e para os art. 24o. e 25o. dos Estatutos. Devo esclarecer que os srs. Píndaro de Carvalho Rodrigues e Egas de Mendonça fazem parte da Comissão de Football há alguns anos, e o sr. Gilberto de Almeida Rego entrou para a referida comissão em 1929. Os Srs. João Paulo Vinelli de Moraes e Fábio de Oliveira, nomeados este ano, são médicos encarregados dos exames dos jogadores” (Correio da Manhã, 2 de julho de 1930).
Os jogadores paulistas na expectativa de defenderem a Seleção, já tinham começado a se mobilizar. Friedenreich, que no dia 29 de maio anunciara a impossibilidade para viajar devido a compromissos na firma em que trabalhava, tinha contornado a situação e, no dia 4 de junho declarou-se pronto para o embarque, conforme telegrama da própria APEA para a CBD. Amílcar Barbuy, sabendo da missão que lhe seria confiada, em entrevista concedida a A Noite, de 30 de maio, clamava pelo patriotismo dos companheiros, colocando-se inteiramente à disposição da CBD. Pelas atitudes desses renomados atletas, vê-se que os jogadores estavam alheados do que a Associação a qual pertenciam estava tramando.
Conclui Fábio Franzini [FRANZINI, p.23]: “A reação da entidade paulista à negativa oficial surpreendeu a todos pela rebeldia. (...) A partir desse momento, essa velha briga política adquiriu proporções que atropelaram a importância da participação do Brasil no campeonato mundial”.
Na manhã do dia 12 de junho, a CBD telegrafou à APEA nos seguintes termos: "Solicito providências urgentes embarque quaisquer noturnos, hoje, amadores requisitados: (segue a lista dos paulistas). Treino amanhã." (Correio da Manhã, 2 de julho de 1930).
Fora a última troca de correspondência entre CBD e a APEA, que não respondeu ao telegrama de 12 de junho.
Na plataforma da estação do Rio de Janeiro, onde desembarcaram os passageiros vindos de São Paulo, nenhum jogador.
No palco, fechadas as cortinas, retiravam-se os dois protagonistas, o dr. Renato e o dr. Elpídio. Será que o dr. Elpídio estava contente com a sua atuação? Será que ele gostara do script que lhe fora passado? Parte dos espectadores considerou o texto muito hermético, de difícil entendimento, mas como era adepta da companhia da qual o dr. Elpídio fazia parte, procurou uma justificativa para sua performance medíocre: sem dúvida fora o dr. Renato que o atrapalhara em cena. Aoutra parte do público, atônita, ansiava por um happy end que não ocorreu.
A platéia se manifesta
Os jogadores – em especial Amílcar Barbuy – foram apanhados de surpresa. Amílcar, desesperado, na tarde de 12 de junho, telefonou para a CBD e comunicou que o sr. Ennio Juvenal não havia tomado nenhuma providência para o embarque. E que, então, ele, Amílcar procurou o dr. Elpídio. Este lhe dissera que os jogadores não embarcariam enquanto não fossem atendidos os desejos da APEA (Correio da Manhã, 2 de julho de 1930).
A Noite, de 13 de junho, foi destilando rancor contra os paulistas: "São Paulo contra o interesse esportivo do Brasil: os players paulistas não prestarão seu valioso concurso ao país, na disputa do Mundial!". E mostra o seu preconceito contra os que vieram de fora, como estivessem eles interessados em nosso fracasso em Montevidéu: "Nada menos do que o regionalismo paulista, impatriótico e pernicioso, contrariando os interesses nacionais, postos em segundo plano pela política quixotesca de maus desportistas: Ennio Juvenal Alves, lusitano; Fares Dabague, sírio; Angelo Christofaro e Orestes Banzechi, italianos, os quais mentores de uma entidade brasileira, forçaram o sentimento nacional do próprio sr. Elpídio que, se hostilizou contra as nossas cores, ferindo gravemente o conjunto que iria buscar a hegemonia do continente no maior certame do mundo".
O Estado de S.Paulo foi apanhado de surpresa. No dia 14 de junho saiu o artigo "Confederação vs. Associação: um rompimento inesperado": "Foi anteontem, à tarde, que começaram a correr os boatos de que a Associação Paulista, magoada com os diretores da CBD, estava disposta a não fornecer jogadores para os treinos (...) De que se tratava? Quais eram os motivos para o ressentimento?”.
O periódico paulista valeu-se, provavelmente, de informações da imprensa carioca, tocando no motivo da discórdia declarado pela APEA: “Alguns jornais disseram que o grêmio oficial não se conformava com a ausência na comissão técnica, de um representante da sua direta confiança, que não podia concordar com o esquecimento, um tanto acintoso, de vários elementos, como Feitiço, Gogliardo e Ministrinho, inexplicavelmente preteridos por jogadores cariocas”.
O Estado de S.Paulo reclama, ainda, o exercício da autonomia, palavra muito utilizada pelos paulistas na Primeira República, mesmo quando essa autonomia não valesse por direito, como era o caso em tela. Lamenta, ainda, a CBD e a APEA não terem discutido a relação: "Sem dúvida que a Confederação se houve com exclusivismo, dispensando as luzes de um técnico que pertencesse à Associação Paulista. (...) Se os representantes da Associação Paulista formulassem o seu protesto, fazendo valer a sua autonomia por certo que as relações entre as duas entidades não se teriam estremecido (...) Há dois meses que esse problema poderia estar liquidado, em harmonia com as exigências técnicas e com os brios dos esportistas.”
A seguir, o jornal deixa uma crítica à tibieza do dr. Elpídio: “A Confederação abusou de sua autoridade e do seu prestígio; mas a entidade regional também foi fraca em demasia, sujeitando-se a todas as ordens emanadas dos esportistas que superintendem a agremiação nacional.”
Finalmente, censura a APEA por sua intransigência ao não aceitar a interveniência de um dirigente de clube paulista (Cunha Bueno, diretor do Paulistano), descartado das negociações por não pertencer aos quadros da Associação: “Parece que os diretores da Associação Paulista só à última hora se exasperaram quando o sr. Renato Pacheco incumbiu o diretor de um clube, que não faz parte da direção do futebol paulista, de interpor os seus 'ofícios' junto a um campeão, que não se dispunha a embarcar apara Montevidéu. Se essa hipótese for verdadeira (...) os dirigentes da APEA são tão exclusivistas quanto os da Confederação.”
No fundo, O Estado externava a imensa frustração por São Paulo estar alijado da Copa. O tradicional órgão da imprensa paulistana, naquele momento não percebera – ou não quisera perceber – o jogo da federação paulista.
No dia 14, ao mesmo tempo em que O Estadode S.Paulo publicava o artigo acima, do qual destaquei vários trechos, no Rio, O Globo divulgava o Relatório Oficial da APEA, citado acima, explicando o porquê de sua atitude.
A agressão de A Noite aos paulistas desagradou a O Estado de S.Paulo. No dia 15 de junho responde, em editorial, às provocações do jornal carioca: "Estamos hoje convencidos de que os esportistas argentinos são os mais atilados do continente. Foram alguns deles, que em palestras, vaticinaram o que está ocorrendo em nosso futebol. Disseram eles: se não houvesse politicalha no Brasil, os adversários mais sérios seriam os brasileiros. Mas estamos descansados, À última hora surgirá qualquer conflito, e virão a Montevidéu os protegidos da Confederação. E por isso tornamos a insistir no nosso ponto de vista: o rompimento entre os mentores nacionais e a entidade regional de São Paulo não passa de um episódio vergonhoso. (...) não distinguimos pessoas: tão bons são os do Rio como os e São Paulo. Os diretores dos dois grêmios não têm compostura, nem noção nenhuma de responsabilidade. No presente caso, os homens da Associação paulista não foram felizes quando resolveram reagir nos últimos momentos. A sua atitude não foi gentil, nem útil aos interesses da coletividade esportiva. Mas os outros da capital da República, pelos modos estavam à espera de uma intempestiva resolução, a fim de inscrever na Federação Internacional os seus mimosos pupilos!
Para não perder a oportunidade, insere o seu preconceito quanto ao modo de vida carioca, já registrado anteriormente, falando do interesse da gente do Rio por viagens e totalmente desinteressada quanto ao prestígio brasileiro lá fora. Mas lastima sinceramente a disputa entre CBD e APEA: “Se houvesse boas intenções dos confederados, a crise de agora seria resolvida imediatamente. Não custava nada enviar um emissário a São Paulo a fim de ouvir os que formulavam reclamações. Não quiseram ter esse trabalho".
A argumentação é falha, dúbia, tendo que obrigatoriamente atacar a CBD e não tendo como defender a APEA. Esse ponto de vista ficou para a posteridade, sendo o exemplo cabal da “incompreensão das partes”, uma versão que contentaria a todos e que disseminada pelo mais conceituado historiador do futebol brasileiro, o jornalista Tomás Mazzoni, se transformou na versão corrente.
No dia 20 de junho, o Diário da Noite, do Rio, dá a sugestão: "Por que não se incluir Amílcar Barbuy, veterano centro-médio do Palestra Itália e do Corinthians, na delegação brasileira na função de auxiliar técnico? O grande eixo da seleção paulista veio chefiando a turma paulista para o treino do dia 28 (...). Os seus conhecimentos de futebol e grande experiência em partidas internacionais recomenda-o como chefe dos paulistas, e como auxiliar de Píndaro".
Ora, se alguém tinha dúvidas sobre o papel de Amílcar, o Diário da Noite tornava pública a intenção da CBD. Do jeito que estava posta a questão, parecia que a CBD é que estaria sendo aconselhada pelo Diário da Noite e não que o Diário da Noite estava sendo o porta-voz da CBD.
Os jornalistas custavam a crer no que estavam ocorrendo. Pensavam em soluções para sair do impasse. Ora, esse impasse fora criado para ser um impasse mesmo. A Noite, de 21 de junho, reproduzia um artigo de Leopoldo Sant'anna, prestigiado jornalista, publicado por A Gazeta, de São Paulo. Nele, o articulista paulista ainda acreditava que o problema poderia ser considerado. Sugeria que a CBD acatasse as "pretensões que a APEA legitimamente [o grifo é meu] defende, de ter um diretor técnico de São Paulo”. Mesmo assim considerava que essa sugestão fosse fácil de ser atendida do que uma segunda proposta por ele formulada, um tanto vaga neste caso, “de analisar a situação pessoal de cada jogador (casados e com ocupações profissionais) e, dessa forma, convocando só aqueles com condição de viajar”. A pretensão da APEA não era legítima ao pé-da-letra, porque contrariava o estatuto da CBD. Quanto à segunda sugestão, talvez Leopoldo Sant’anna estivesse pensando que o problema maior fosse a separação dos jogadores de suas famílias e de seus trabalhos.
O Estado de S.Paulo também não tinha caído na real. Em 25 de junho, lembrava que, além dos nove convocados, havia mais seis jogadores paulistas bastante capacitados para formarem no escrete, como se esses nove mais seis pudessem ser cedidos pela APEA. Nesse mesmo dia acontecia o primeiro treino sem os paulistas, nas Laranjeiras.
A derrota festejada
No dia 2 de julho, a delegação, sem os paulistas, seguiu para Montevidéu a bordo do Conte Verde. A Seleção estreou contra a Iugoslávia, perdendo por 2 a 1. Os iugoslavos bateram os bolivianos, na partida seguinte, por 4 a 0, classificando-se para a etapa seguinte. Na despedida, o Brasil, já eliminado, derrotou a Bolívia por 4 a 0.
Na edição especial da Folha de S.Paulo sobre as Copas do Mundo, de 15 de maio de 1994, André Fontenelle escreve: “A derrota dos ‘cariocas’ foi festejada em São Paulo”. Cita o depoimento de Feliz Inarra, dirigente do Huracán da Argentina que excursionava em São Paulona ocasião do jogo entre brasileiros e iugoslavos: “Na tarde em que os brasileiros, pela fatalidade, perdiam de 2 a 1 dos iugoslavos, eu passava por uma rua onde tinha um jornal. Vivas e mais vivas eram entoados e eu disse: ‘Os brasileiros venceram’. Um rapaz próximo de mim disse então: ‘Não senhor, os cariocas perderam por 2 a 1’. E com espanto maior vi desfilar um funeral, onde os cânticos fúnebres e morras aos cariocas ecoaram! Fiquei bobo e pensei como nós, argentinos, tínhamos pena de ver os brasileiros, alijados do campeonato, gozarem seus irmãos! Pensei que não era território brasileiro...”.
Belmonte, criador da figura de Juca Pato, uma espécie de Zé Povinho paulista, de paletó e gravata, mostrou toda a sua facciosidade na charge abaixo, de 20 de julho de 1930, republicada pela Folha de S.Paulo (15 de maio de 1994).
No primeiro quadro, o paulista, sem dúvida sério e responsável, vê passar o risonho malandro carioca. Na maleta do carioca está a etiqueta “Montevidéu”. No segundo quadro, o carioca perdera sua malandragem, derrotado que fora na Copa do Mundo. Levara uma surra. Passa todo estropiado pelo paulista. Já o paulista, sem perder a pose elegante, ri fartamente do fracasso do carioca.
Desdobramentos da crise de 1930
As conseqüências da crise chegaram à Copa Mundial de 1934, realizada na Itália. Em 1930, Fluminense trabalhou para formar uma Seleção Brasileira, cujo objetivo era enfrentar a França, que retornava da Copa de Montevidéu. Para tanto, convidou jogadores paulistas. Curiosamente, a APEA não impôs empecilho, mesmo que na direção técnica não houvesse nenhum paulista. O técnico era o carioca Luís Vinhaes. Estranho, não?
A Seleção Brasileira, patrocinada pelo Fluminense, desagradou ao presidente da CBD, Renato Pacheco, que engoliu em seco, mas não passou recibo, declarando ao jornal A Noite (29 de julho): "Realmente os paulistas, ao que pretende o Fluminense, deverão figurar no selecionado que enfrentará os franceses. Como sabem, o caso que preocupou a Confederação e os brasileiros, da recusa formal dos players da APEA, não teve solução ainda. Deste modo, a CBD não pode interpretar qualquer impedimento aos desejos do clube filiado à AMEA". O dr. Renato engoliu em seco, é verdade, mas ficou com o Fluminense atravessado na garganta, dando o troco em 1933, ao não aceitar a adoção do profissionalismo que os tricolores cariocas lideraram. Isso prejudicou a escalação do escrete para a Copa de 34.
Em 1934, os melhores jogadores eram profissionais e a CBD era amadora. Os profissionais fundaram a Federação Brasileira de Futebol. Mas quem era filiada à FIFA era a amadora CBD. O amadorismo da CBD foi conspurcado nessa ocasião, pois a entidade máxima do futebol brasileiro aliciou alguns atletas da Federação profissional, pagando para que eles participassem da Seleção. Conseguiu quatro atletas do São Paulo, dois do Vasco, dois do Sul e o restante do único clube amador de projeção, o Botafogo. Assim, bastante capenga, lá foi à CBD para a Copa da Itália, sendo eliminada na partida inicial pela Espanha [SOTER, p.52/53].
Para decidir o que fazer diante da atitude da APEA, o Conselho de Julgamento da CBD se reuniu no dia 1o. de agosto de 1930 resolvendo suspender a entidade paulista por 8 meses, 7 dias e 12 horas (esquisita suspensão!). A APEA ficava impedida de manter relação esportiva, para efeito de competição, com qualquer entidade ou clube, estadual ou internacional. Assim sendo, os clubes paulistas só poderiam disputar o campeonato local. O Globo, vencida a revolução de 30, trabalhou pela anistia da APEA. E a APEA foi perdoada.
A verdade é que, na Copa do Mundo de 1930, o futebol brasileiro perdeu a sua primeira oportunidade de ser reconhecido internacionalmente, ao se fazer representar de modo tão acanhado. Tínhamos brilhantes jogadores que deixaram de exibir as suas qualidades no momento próprio. A principal responsável por isso foi a Associação Paulista de Esportes Atléticos. O seu modo de proceder se assemelhou ao modo paulista no campo político. Queria uma autonomia, que não lhe era devida por direito; autonomia consagrada aos Estados pela Constituição de 1891, mas que não chegara aos estatutos da CBD. Queria o privilégio de ter um dirigente seu na delegação brasileira que iria à Copa do Mundo; privilégio esse não existente no regime presidencialista da CBD, que não era o mesmo presidencialismo exercido pelos governantes nacionais, delegados dos cafeicultores paulistas.
Mais do que uma comédia de equívocos shakespeariana, deu-se uma desastrada manobra política no futebol visando quebrar uma autoridade tão questionada pelos paulistas, a da CBD, a quem suas Ligas e Associações enfrentaram em sucessivas quedas-de-braço (ou braços-de-ferro) até o dramático desfecho da Copa de 30.
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